sábado, 9 de janeiro de 2010

Tempo de idéias

As ruas, há muito, demostravam-se solitárias. Em cada esquina podia-se sentir o cheiro fétido de urina, escarro e lama. As chuvas rotinárias não deixavam nenhum rastro de terra seca, assim, as raras pegadas ali marcadas denunciavam alguma pobre alma a pé que passara sem compromisso. Dos bares só se era possivel ouvir as esquecidas lembranças referentes a famosos LPs inesquecíveis. The Beatles, Bob Dylan, The Clash... Gêneros e letras diversas para quem quisesse apreciar. Destaque também para as meninas e bebidas lá oferecidas, afinal, após a mistura desses três ingredientes, só havia uma certeza no final da madrugada: sexo. Certeza, obviamente, para os mais espertos e menos sujos. A brisa, que cortava levemente o silêncio impregnado em cada esquina, também desafiava as folhas presas em topos de altas árvores. "Nada é anormal ou fora da lei, mas nada é mais comum por aqui". Os tempos haviam mudado, tornaram-se mais amenos e irreconhecíveis à medida que a liberdade já podia ser reconsiderada como ideal e a solidão não era mais fator constante na vida dos ocupantes desse pequeno cenário. Mas como de costume, o único lugar dessa nefasta cidade que nunca se mantia calado era o antigo Hospício Craw, que mesmo depois de interditado, suas histórias iam além do alto muro de concreto cinza com portões enferrujados que o rodeava.
12 de agosto de 1984
Não tenho filhos, esposa e nem a pretensão de tê-los. Já tenho preocupações o suficiente comigo mesmo. A tv está ligada, mas nunca há nada de interessante para se ver, por isso sento e escrevo. Nada de importante. Desenho, rabisco, escrevo um diário. Quem sabe depois que eu me for pra um lugar melhor alguém encontre esse caderno com minhas memórias. Uma carteira de cigarro já não é mais o suficiente pra uma hora. Tudo me faz fumar e em grande quantidade. Seja por causa da velha insuportável do andar debaixo que aparece para cobrar a merda do aluguel ou pelo simples fato de eu não aturar mais nada. A cidade está se tornando cada vez mais um lixo e as pessoas vivem com medo delas mesmas e do governo. Nada é anormal ou fora da lei, mas nada é mais comum por aqui. Moro num apartamento pequeno, com alguns móveis, paredes mal pintadas e barulho, muito barulho vindo de toda parte. Não posso reclamar, pois consigo pagar por esse buraco e isso já é algo. Tento manter a descrição sobre o meu trabalho, porque o que faço é seguramente um forte motivo para que o Governo bata à minha porta para maiores esclarecimentos. Costumo chamá-los de "Roedores", pois detonam tudo que conseguir de qualquer pessoa por uma boa informação. Até sua vida.
21 de outubro de 1984
A televisão anuncia que Steve Jones acaba de bater o recorde na maratona em Chicago. Interessante. Sempre quis ter alguma fixação e fazer disso uma vitória, mas isso não é pra mim. Durante esses três meses que se seguiram de um registro para o outro, passei alguns sufocos tentando cumprir o objetivo do meu trabalho. Os Roedores são animais persistentes e sombrios, escondem-se em vielas escuras e escultam tudo o que se move e que tem ruído. Portanto não é facil fazer o que faço. A ida ao bar ontem foi a única coisa que conseguiu me alegrar. Fazia tempo que não dançava com belas moças e entornava uma boa garrafa de uísque. Gosto de passar um tempo lá ouvindo os LPs "da moda", sem contar que meus ídolos preferidos estão sempre sendo reproduzidos por meio desses bolachões.
22 de dezembro de 1984
Já não durmo há 3 dias. Não consigo descansar sem pensar que a qualquer hora eles virão atrás de mim. Ouço barulhos na porta, mas não posso distinguir se é apenas o vento ou eles a espera da minha distração. Tudo deu errado. Mais cedo ou mais tarde eu sabia que isso iria acontecer, por isso não tenho filhos, esposa nem nada que me faça ter apego sentimental. Agora eu sei como é se sentir prisioneiro de si mesmo. O natal se aproxima e a única diferença desse para os outros é que eu finalmente sei o que me espera no futuro.
3 de março de 1985
Só agora obtive forças para voltar a escrever. A paisagem que vejo hoje já não é igual à anterior. Já não é mais minha cama, minha tv ou minha mesa que vejo. Agora tudo é simplesmente branco sem qualquer tipo de móveis. Apenas um quadrado acolchoado branco. Não tenho mais noção das horas, apenas sei o dia porque as poucas vezes que saio desse quarto consigo ver um calendário sujo preso numa das paredes da secretaria. Como cheguei aqui? 30 de dezembro foi o dia, no mínimo marcante, na vida dessa pobre alma que vos escreve esse diário. A porta abriu com um grande estouro provocado provavelmente por um forte chute. Assim que percebi o que iria acontecer, escondi o diário embaixo da blusa, prendendo-o na calça. Três roedores entraram e só pude ver uma camiseta branca na mão de um deles, enquanto os outros dois me apagavam. A luz recobrou a tempo de me fazer enxergar o nome do local com portões rígidos por onde adentramos: Hospício Craw. Não há melhor lugar para se obter informação do que no terreno onde a realidade é relativa à expansão da loucura. Nem a cadeia consegue ser tão suja e cruel como aqui.
15 de maio de 1985
Demoro a escrever, pois é arduo distinguir o que é real da fantasia. São os malditos remédios e as torturas que me deixam mais lunático. Ontem foi o dia do Roedor fazer algumas perguntas relacionadas a minha possivel participação com um movimento crescente na cidade, que coloca o nome do Governo em maus lençóis. Não respondi, não vou ceder assim tão fácil. É necessário muito mais calmantes e sedativos para me fazer falar. O Hospício Craw é um lugar atormentado e sombrio. Seus corredores são estreitos e dão a sensação de labirintos sem destino certo. E por pior que sejam, as pessoas sempre se parecem umas com as outras, afinal estão na mesma prisão vivenciando a mesma loucura. Apenas uma coisa ainda me alegra: saber que há de fato um movimento pela cidade. Então isso quer dizer que nem tudo deu errado e eu posso tranquilamente aceitar a morte como único escape dessa tortura.
29 de julho de 1985
O gosto da minha última refeição é particularmente mais peculiar. Tem sabor de angústia, mas tempero de vitória. Não morrerei em vão, e sim sabendo que não fraquejei em momento algum. Há notícias sobre o enfraquecimento do Governo e isso me dá motivos para não temer a morte. Marco esse dia como sendo o dia que passo desse para um lugar melhor. Muito melhor. À propósito, meu nome é Tom Petry.
O diário parou em minhas mãos como se seu destino fosse certo, assim como as idéias de Tom. Lembro-me que na época, meu pai havia recebido uma carta por de baixo da porta e a guardara em um de seus baús. Não só ele como o resto da cidade que não tinha ligação alguma com o Governo recebeu também. Foi o suficiente para que Roedores temessem a perda do poder e apertassem ainda mais o cerco de perseguições. Algo como alguns meses de confronto, até mesmo depois da morte de Tom, foi necessário para o enfraquecimento absoluto do poder do Governo e de seus subordinados.
"Olhai, Povo, por entre os becos, por entre as casas e através da imaginação. Não é necessário muito esforço para perceber que tudo entre nós está sendo destruído e ridiculamente transformado em instrumento de poder por parte daqueles que somos obrigados a chamar de governantes. Governantes sim: da opressão, do sofrimento e da morte. Somos a maioria e mesmo assim nada podemos fazer. Alias, não podíamos até agora. Convido-os, cavaleiros e damas, para uma guerra. Não qualquer guerra, mas uma silenciosa e mortal, onde só quem vai morrer definitivamente são aqueles que sempre procuraram a tortura como forma de vitória. O nosso trunfo está estampado em cada rosto e em cada pensamento que podemos formar juntos. Espero-os ansiosamente para que os jogos começem. Estejam preparados e se perguntem se a vida que levam é correspondente a que gostariam de ter. T.P."
As idéias geralmente têm mais poder do que qualquer ação clara. E isso Tom entendia perfeitamente.