sábado, 29 de maio de 2010

Última lembrança

A luz, que parecia vir de baixo pra cima, era na verdade o reflexo causado pelos cacos de espelho espalhados pelo chão. Não se ouvia barulho algum além dos longos suspiros arrancados esporadicamente de dentro com força. Há muito não se via o mundo lá fora. Como será que o sol estava nascendo ao longo desse tempo? Na diagonal ou de cabeça pra baixo? Será que as ruas ainda se sujeitavam a sustentar todos os milhões de carros e pessoas ou finalmente haviam se revoltado? Era algo que continuaria sem resposta a menos que fizesse algo a respeito. Sabia que por perto havia água. O que antes lhe parecia um maldito barulho ritmado de goteira, transformara-se num marca-tempo musical. E sua canção preferida ressoava em sua cabeça através da melodia das gotas que caiam no chão. "Quando eu morrer permita Deus que nessa hora/Ouças ao longe o cantar da cotovia" era sua frase preferida de toda a música. Não acreditava em Deus e sabia que não haveria alguém a ouvir a cotovia anunciando sua morte. Mas a doce canção que, há muito tempo, ouvira - estranhamente - se demostrava cada vez mais real agora. Como havia parado ai? Quando cometera o deslize de parar ai? Era algo que, por maior esforço que fizesse, jamais ia chegar a uma conclusão correta.
- Você ouviu isso?
- O que? Não, não posso ouvir nada.
- Ouça... Parece uma goteira.
- Já discutimos sobre isso. Essa goteira está ai desde do momento em que ouvimos a primeira gota cair, naturalmente.
- Não. Agora é diferente. O ritmo mudou, o som mudou.
- Você está ficando doido. Isso seria impossível já que você é o único aqui.
- Não sou o único aqui. Tenho você.
- Bem, convenhamos que isso não é muita coisa, afinal eu sou vo...
- Silêncio! Sente esse cheiro?
- Não, não posso sentir nada.
- Devo estar ficando doido então. Quando mesmo isso aconteceu?
- Foi quando você decidiu que queria tentar algo novo. Experimentos exagerados levam a isso.
- Desde quando aqui só tem uma janela?
- Assim que você desejou que só tivesse essa e, conseqüentemente, menos claridade.
- Eu desejei? Eu não tenho esse poder.
- Temo em te dizer que está enganado. Você sempre teve total manipulação sobre esse local e sobre mim.
- Do que você está falando? Sinto que não tenho controle algum sobre você. Olhar para ti é como me ver no espelho e já não me controlo há muito tempo. Falando em espelho, onde ele está?
- Você não queria ver o estado em que se encontrava, portanto, o melhor que podia ter feito foi arremessá-lo contra a parede. - depois de notar o brusco recuo - Por que você está chorando?
- Eu quebrei o espelho. - levando a cabeça à parede - Na verdade, já estou começando a duvidar das coisas que você me fala. Quem me garante que não foi você que o quebrou?
- Eu posso provar. Olha sua mão direita. Ela está cortada, não?
- Como você sabe?
- Porque a minha também está. Eu sou você.
- Cansei dos seus jogos. Deixe-me em paz.
- Não estou fazendo nenhum jogo. Você quem começou a brincar com coisas cada vez mais pesadas. Agora, se você não voltar à realidade, eu estarei sempre preso a ti dessa maneira.
- O que quer dizer com "voltar a realidade"?
- Sinto agora que finalmente vamos voltar...
A porta do banheiro se abriu com uma árdua batida. A cena que se visualizava do estreito cômodo não era nada agradável. Havia uma poça de sangue no chão devido ao corte profundo na mão provocado pela rachadura disforme do espelho suspenso em cima da pia, que pingava incessantemente. Ao lado, um caixinha com uma das abas abertas deixava clara a sua função: guardava dezenas de rémedios e pílulas contendo ácido lisérgico e mescalina, produtos alucinógenos que dão origem ao LSD. Mas, por algum motivo, Diego não parecia sofrer. Mantinha em seu rosto uma serenidade de quem dorme depois de uma grande farra e um sorriso que ameaçava despontar no canto de sua boca. Mesmo que alguém se esforçasse muito, jamais ouviria ao menos uma única cotovia cantar.