terça-feira, 24 de agosto de 2010

Amizade

- Oii. Tá me ouvindo?
- Siiiim, vem pra cá!!
- O que?
- VEM pra CÁ.
- Não consigo ouvir nada que você está falando.
- Sua mulher te traiu comigo!
- Não estou entendendo os sinais. Fala mais ALTO!
- CHIFRUDO.
- Boi? O isso quer dizer? Espera, estou indo aí!

"Droga. Agora como vou contar pra ele?"

- Oi, meu chapa. Não estava entendendo nada lá do outro lado da rua com todo esse barulho de construção.
- Estava perguntando como anda sua vida.
- Vai bem, nada demais. Ando tendo uns conflitos familiares, mas nada que não possa ser resolvido entre quatros paredes com a patroa, se é que você me entende.
- Sim, sim. E as filhas? Estão indo bem no colégio? Como anda seu jardim? Nossa, as árvores estão vistosas. Você tem que me ensinar a cuidar das plantas assim.
- Muito obrigado. Mas então, vi você fazendo um sinal de chifre. Que que aconteceu? Algum boi da sua fazenda morreu? Você comprou algum novo? Qual era a do sinal?
- É um assunto complicado. Bom, como posso te falar? Lembra do dia que nos conhecemos? Você, tímido. Eu, muito descontraído. Ficamos amigos logo depois que eu te sacaniei no pátio da escola. Aquele dia foi hilário. Ai depois fomos para a faculdade juntos e tudo foi sempre tão divertido. Vi suas filhas crecerem e sua família desmoronar, digo, comemorar todos os eventos juntos. Enfim, quero que você considere essa nossa grande amizade para entender e perdoar o que vou te falar a seguir.
- Fale. Que que você fez dessa vez? Jogou minhas cuecas na piscina ou jogou água no carvão da churrasqueira?
- Não, estou tendo um caso com a sua mulher.
- ...
- Quer conversar?
- Não, não. Tá tudo certo. Agora vejo que fizessemos uma ótima troca. A sua mulher só de calcinha vermelha é melhor que a minha vestida com sutiã de renda.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Rua 15

- Boa noite, dama. Tá quanto?
- Bom, pelo conjunto da obra e pelas coisas que posso realizar, é 50 mangos para você, gato.
- Tudo isso? Nossa, que sacanagem!
- Sim, a sacanagem é uma das ferramentas de trabalho que uso como forma de incentivo e auto-promoção.
- É, admito que o seu conjunto é realmente admirável. Mas é um preço que não penso em pagar.
- Pensar demais atrapalha, cavalheiro. Ok, você que sabe. É pegar ou conversar.
- Não seria "pegar ou largar"?
- Seria? Não importa. Se quiser conversar é de graça.
- Não costumo conversar muito com pessoas desse meio, sabe, mas já que é de graça, até injeção dada.
- Não seria "injeção na testa"?
- Na testa? Isso não faz o menor sentido e além do mais deve doer. Então, do que vamos falar?
- Família, política, dinheiro, amor, estudos, trabalho. É só escolher um desses temas clichês para começarmos um papo mecânico.
- Não tenho família, odeio política, não pretendo te pagar 50 reais, perdi meu amor em uma dessas esquinas, já sou formado há algum tempo e o meu trabalho tem lá as suas diversões. Foi mecânico demais?
- Não, foi resumido. Então que tal falarmos sobre algo que provavelmente você deve desconhecer ou nunca viveu?
- Ótimo. Na verdade, tenho uma dúvida. Você não sente frio? Porque com poucas peças de roupa assim, qualquer ser humano normal sentiria frio.
- Não, na verdade sou à prova de fenômenos naturais.
- Essa é boa. Ouvi dizer que uma boa dose de pinga mata o frio também, entre outras coisas.
- Fique você sabendo que não posso beber no trabalho. É contra as regras.
- Tá, mas me explique melhor esse lance de ser "à prova de fenômenos naturais".
- Quando chove, eu abro o guarda-chuva; quando venta, eu entro em algum dos carros que param por aqui; e quando neva... bom, nunca neva, na verdade.
- Assim não vale. Você não é "à prova dos fenômenos", apenas utiliza artifícios que te ajudam a se proteger deles.
- Você que não entendeu o sentido real do contexto, bobinho.
- Tudo bem. E desde quando existem regras? Pensei que nesse "mundo" não existisse isso. É como dizem: "Tudo liberado por R$30".
- Você continua com esse ar de arrogância e superioridade, não é mesmo? Primeiro: sim, existem regras. Segundo: R$30 não paga nem a primeira etapa do serviço. E terceiro: de que "mundo" você está falando afinal? Porque eu só conheço um e creio que é o mesmo para nós dois.
- Eu não estou com nenhum ar de arrogância nem superioridade.
- Claro que não. Só de prepotência, certo? Já que não se cansa de afirmar que existe um mundo feito só para você e para as pessoas que pensam futilmente dessa maneira.
- Você está me ofendendo. Além do mais, eu poderia pagar quanto eu quisesse por esse seu corpinho e pelos seus serviços medíocres que qualquer outra pode fazer no seu lugar, mas já vi que você não vale nem dez centavos. Vou embora porque eu ganho mais do que conversando com mulheres como você.
- Sim, sim. Acredito que o cliente sempre tenha razão, porém antes que você vá, a conta deu 15 reais. Conversar é de graça, mas gastar meu tempo tem preço.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

(a)Normalidade.

No centro do prato havia uma certa divisão estabelecida há quase 30 anos desde que aprendeu a comer sem ajuda dos pais. Feijão à esquerda; arroz, à direita e qualquer outro acompanhamento, rigorosamente, na parte superior. Essa era a base para quase tudo na sua vida: modo de trocar de roupa, de escovar os dentes, de se olhar no espelho, de conversar e, o mais importante, de lustrar o sapatos. Primeiro o pé esquerdo, depois o direito. Não que acreditasse em supertições ou azar, mas o contexto à sua volta remetia a esse certo capricho. Seus amigos eram peculiares e seus gostos diferentes da maioria das pessoas. Gostava de ver televisão deitado de cabeça para baixo. "Vejo melhor assim", dizia. Passava horas no quarto sentado envolvido em seus próprios pensamentos... "Será que eu vou conseguir zerar Black dessa vez?". O telefone sempre tocava 00:30. Era seu vizinho, que pode também ser chamado de amigo, avisando que no canal 69 estava passando o Eros Time. Todos os dias era a mesma coisa. E lá ia ele dar uma olhada para ver se novamente os produtores iriam colocar a mesma atriz sem graça da semana passada. "Nada como o humor erótico", ria. E ria sozinho. Porque há quase 30 anos, desde que aprendeu a viver e comer sem a ajuda dos pais, ele mora sozinho. Mulheres, essas só mesmo no canal 69. Provavelmente pelo trauma que sofrera na época do colégial: "Oi, você quer ver minha meleca? Tem gosto de danone e é verde". Nenhuma garota nunca mais quis sentar ou estar perto dele até a formatura. Assim, se acostumou a viver sem o sexo oposto, que só serve para atuar em filmes eróticos. Seu maior prazer era observar as pessoas subindo e descendo as escadas rolantes nos shoppings: as velhas sempre confundiam a direção das escadas, as crianças quase sempre caiam sem a ajuda dos pais, os pais raramente prestavam máxima atenção em seus filhos e os adolescentes, às vezes, tinham a brilhante idéia de ir contra o ritmo de propulsão do movimento. Mas, quase 98, 73% de todos que transitavam ali pegavam no corrimão. "Ninguém sente vergonha de fazer isso? O mundo está perdido." E anotava em um pedaço de papel casos extremos de "anormalidades" como essa.
Seu superego sempre se manteve tão inflado que mal podia pensar com clareza em fazer coisas impulsivas, já que a balança que equilibrava seu caráter e modo de agir pesava significativamente para o lado chato e idoso dessa medida. Antes de fazer qualquer movimento que o expusesse frente a outras pessoas, como sair de casa, era necessária muita disposição mental para enfrentar as condições adversas presentes na maioria dos lugares. Mas para pagar as poucas e básicas contas que lhe eram cobradas mensalmente era indescutível passar por esse ritual até chegar à sua mesa de trabalho todas as manhãs. Sentava-se na cadeira e se mantinha frente ao computador quase que por todo o expediente, parando apenas para tomar água com adoçante, seu doce preferido, e para ouvir as piadas do Homem-do-Olho-de-Vidro que trabalhava na mesa ao lado.
HOV: Qual é o inquilino que mais sofre, T.?
Nosso protagonista apoiava um dos braços na estande próxima com ar de quem nunca tinha ouvido essa e respondia com outra pergunta:
T: Quem?
HOV: O espermatozóide.
T: Hmm, por que?
HOV: A casa é um ovo, o condomínio é um saco, os visinhos do lado são uns pentelhos, o visinho dos fundos só faz merda, e quando o dono está duro, bota ele pra fora.
T: Interessante. Mas não entendi a parte de como "bota ele para fora".
HOV: Você já ouviu essa piada tantas vezes e ainda continua sem entender essa parte. Acho que você tem que começar a praticar mais - e deitava por cima da mesa rindo incontrolavelmente.
T: Olha, Homem. Há quase 30 anos, desde que aprendi a viver e comer sem a ajuda dos meus pais, moro sozinho, conheço intimamente só as mulheres do canal 69, tenho um bloco de anotações onde escrevo o que pessoas esquisitas como você fazem e todos os dias batalho mentalmente para poder aturar o mundo exterior. Acho que, no mínimo, eu merecia saber a explicação dessa piada, não acha?

sábado, 29 de maio de 2010

Última lembrança

A luz, que parecia vir de baixo pra cima, era na verdade o reflexo causado pelos cacos de espelho espalhados pelo chão. Não se ouvia barulho algum além dos longos suspiros arrancados esporadicamente de dentro com força. Há muito não se via o mundo lá fora. Como será que o sol estava nascendo ao longo desse tempo? Na diagonal ou de cabeça pra baixo? Será que as ruas ainda se sujeitavam a sustentar todos os milhões de carros e pessoas ou finalmente haviam se revoltado? Era algo que continuaria sem resposta a menos que fizesse algo a respeito. Sabia que por perto havia água. O que antes lhe parecia um maldito barulho ritmado de goteira, transformara-se num marca-tempo musical. E sua canção preferida ressoava em sua cabeça através da melodia das gotas que caiam no chão. "Quando eu morrer permita Deus que nessa hora/Ouças ao longe o cantar da cotovia" era sua frase preferida de toda a música. Não acreditava em Deus e sabia que não haveria alguém a ouvir a cotovia anunciando sua morte. Mas a doce canção que, há muito tempo, ouvira - estranhamente - se demostrava cada vez mais real agora. Como havia parado ai? Quando cometera o deslize de parar ai? Era algo que, por maior esforço que fizesse, jamais ia chegar a uma conclusão correta.
- Você ouviu isso?
- O que? Não, não posso ouvir nada.
- Ouça... Parece uma goteira.
- Já discutimos sobre isso. Essa goteira está ai desde do momento em que ouvimos a primeira gota cair, naturalmente.
- Não. Agora é diferente. O ritmo mudou, o som mudou.
- Você está ficando doido. Isso seria impossível já que você é o único aqui.
- Não sou o único aqui. Tenho você.
- Bem, convenhamos que isso não é muita coisa, afinal eu sou vo...
- Silêncio! Sente esse cheiro?
- Não, não posso sentir nada.
- Devo estar ficando doido então. Quando mesmo isso aconteceu?
- Foi quando você decidiu que queria tentar algo novo. Experimentos exagerados levam a isso.
- Desde quando aqui só tem uma janela?
- Assim que você desejou que só tivesse essa e, conseqüentemente, menos claridade.
- Eu desejei? Eu não tenho esse poder.
- Temo em te dizer que está enganado. Você sempre teve total manipulação sobre esse local e sobre mim.
- Do que você está falando? Sinto que não tenho controle algum sobre você. Olhar para ti é como me ver no espelho e já não me controlo há muito tempo. Falando em espelho, onde ele está?
- Você não queria ver o estado em que se encontrava, portanto, o melhor que podia ter feito foi arremessá-lo contra a parede. - depois de notar o brusco recuo - Por que você está chorando?
- Eu quebrei o espelho. - levando a cabeça à parede - Na verdade, já estou começando a duvidar das coisas que você me fala. Quem me garante que não foi você que o quebrou?
- Eu posso provar. Olha sua mão direita. Ela está cortada, não?
- Como você sabe?
- Porque a minha também está. Eu sou você.
- Cansei dos seus jogos. Deixe-me em paz.
- Não estou fazendo nenhum jogo. Você quem começou a brincar com coisas cada vez mais pesadas. Agora, se você não voltar à realidade, eu estarei sempre preso a ti dessa maneira.
- O que quer dizer com "voltar a realidade"?
- Sinto agora que finalmente vamos voltar...
A porta do banheiro se abriu com uma árdua batida. A cena que se visualizava do estreito cômodo não era nada agradável. Havia uma poça de sangue no chão devido ao corte profundo na mão provocado pela rachadura disforme do espelho suspenso em cima da pia, que pingava incessantemente. Ao lado, um caixinha com uma das abas abertas deixava clara a sua função: guardava dezenas de rémedios e pílulas contendo ácido lisérgico e mescalina, produtos alucinógenos que dão origem ao LSD. Mas, por algum motivo, Diego não parecia sofrer. Mantinha em seu rosto uma serenidade de quem dorme depois de uma grande farra e um sorriso que ameaçava despontar no canto de sua boca. Mesmo que alguém se esforçasse muito, jamais ouviria ao menos uma única cotovia cantar.

terça-feira, 27 de abril de 2010

sábado, 24 de abril de 2010

Adultérios

A vizinha, que não era esperta nem nada, abriu a porta e já foi entrando:

- Carlos, seu safado! Eu sei que você está aqui. Apareça.
- Mas que confusão é essa? - com voz sonolenta, surge pelo corredor um rapaz alto e bem novo.
- Cadê aquela galinha da sua mãe? Eu sei que ela está com o meu Carlos.
- Minha senhora, minha mãe não tem nenhuma galinha. E quem é Carlos?
- Você entendeu o que eu quis dizer. São dois safados aqueles, aqueles...
- Aceita uma água?
- Não, quero meu Carlos!
- Mas me conte o que está te deixando tão aflita.
- Você não percebe que sua mãe é amante do meu marido? Eu sei que sim, apesar de nunca ter visto os dois juntos de fato, mas tenho certeza.
- Como pode ter certeza de algo sem provas?
- Eu já vi o modo como ele abre a porta de entrada pra ela, como dá "Bom Dia" ou aperta o botão do elevador. Parece que é mais especial...
- Bom, realmente temos um caso grave de traição por aqui.
- Quero pegar os dois na cama agora e acabar com essa situação.
- Parece ser uma missão difícil nesse exato momento.
- Vamos, garoto. Cadê sua mãe? Fala logo, porque quando eu vê-los.. Mas por que seria uma "missão difícil" ?
- Não moro com a minha mãe desde que eu fiz 20 anos.
- Aqui não é o apartamento 403?
- Não, é o 203.
- Bem, se você passar pelo Carlos, diga que eu o espero ansiosa no 605. Obrigada pela água.

A vizinha, que não era esperta nem nada, deu meia volta e foi saindo.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Qual cor?

- Sabe qual cor ficaria bem nessa parede?
- Não.
- E não quer saber?
- Por que eu não iria querer saber?
- Porque você não fez a pergunta...
- Qual?
- Essa!
- Você, por acaso, parou de tomar os remédios ou simplesmente ainda não largou as drogas?
- Não, palhaço... esperei você perguntar: "E qual cor ficaria bem nessa parede?". Mas você não o fez.
- Claro! Você nem me deu tempo.
- Mas isso não é algo que demanda tempo, é instantâneo. Assim como, por exemplo, quando alguém te pergunta: "Você conhece o Marcos?". Ou você responde: "Sim, por que?" ou "Não, por que?". A pergunta secundária que vem depois da resposta primária já é algo natural.
- E quem é Marcos?
- O que?
- Reposta errada. Quem diabos vem a ser Marcos e o que ele faz na nossa conversa?
- Eu não conheço nenhum Marcos. Acabei de inventar.
- Mas você não pode sair por ai inventando personagens com nomes comuns.
- É isso que eu faço: ilustro exemplos com personagens fictícios. E eu não "sai por aí". Ainda estou aqui. E o que você tem contra os nomes comuns?
- Bom, eu conheço um Marcos. Ele vendia figurinhas de álbum para mim na quinta série.
- Aquelas do Pokémon?
- O que?
- Não te irrita o rumo que sempre tomam nossas conversas?
- O que? Ainda estou pensando nas figurinhas que eu comprava. Tinha uma prateada que valia 0,34 centavos. Que nostalgia.
- Nostalgia dá barriga de chopp.
- Beber cerveja também.
- Por falar em beber, quero sentar.
- E qual a ligação entre as duas coisas?
- Bom, você bebe cerveja em pé? Só se faltar cadeira no bar, e ainda sim, dá pra sentar na mesa.
- Lá em casa eu bebo deitado. Tem um cigarro ai?
- Eu não fumo. Em 10 anos de convivência, você ainda não tinha percebido? Provavelmente terei cancêr fumando passivamente assim por todos vocês.
- Tá, tem um cigarro ai?
- Cansei de ficar olhando pra essa parede. Do que estávamos falando mesmo e por que estamos parados aqui?
- Era alguma coisa sobre um Marcos que vendia figurinhas na sua escola e bebia cerveja em pé.
- Não, não. Lembrei. Sabe qual cor ficaria bem na parede?
- Lá vamos nós de novo...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Ele entendeu...

Se algum dia me perguntarem

O que é amor?

Jamais saberei responder

Não pretendo ensinar a arte da paixão

nem tenho dom para isso mesmo que quisesse

Pode ser natural como o dia ou a noite

ou intencional tal qual aquelas chuvas de verão

O fato retrata, pois, ambigüidades relevantes

Abraços encontros

Encantos amassos

Assim, então, quem sabe

Se algum dia me perguntarem

O que é amor?

Arrisco responder.

domingo, 18 de abril de 2010

Internos

"Como posso passar pela porta sem ser notado? Impossível. Tem sempre alguém ali dando uma de segurança de casa noturna. Se bem que a única diferença entre esse lugar e um bordel são os móveis. Nunca vi tais esculturas africanas de madeira nessas casas promíscuas. Bom, é fácil deduzir o porquê desse fato: nunca fui à uma. Meu pai costumava usar seu poder de persuasão para me introduzir logo na grande Cadeia Mundana do Pecado. 'Eu pago uma bacana para você, meu filho'. Palavra engraçada: bacana. Em pleno século 21, só mesmo da boca dele, eu ainda poderia ouvir estupenda palavra. 'Tempos bons aqueles em que papai aqui era Rei. Sabe o que significa isso? Não, acho que não. Você ainda está muito novo pra entender. Um dia será também'. No final das contas, nunca precisei mesmo do dinheiro nem das dicas dele para chegar aonde estou nesse momento. O que não me parece nada mal, mas também não é de tamanho agrado, já que a satisfação plena e vital que tanto procuro é algo dificil de ser alcançada. Os amigos que tenho são suficientes para se dividir a conta, os colegas que fiz são suficientes para se subtrair as bebidas e o resto é apenas figurante do tipo discordante crônico, daqueles que não passam despercebidos apenas pelo fato de nunca concordarem com algo que você faça. Infelizmente, hoje e aqui, estou rodeado majoritariamente por figurantes e alguns poucos conhecidos. Por que mesmo resolvi vir pra cá? Devia ter ficado em casa fazendo o que faço de melhor: nada, assim como meus amigos. Desse ângulo, aquela menina esquelética e ruiva não me parece tão estranha dançando sensualmente com mais três pessoas, as quais nem o sexo posso distinguir. Provavelmente a luz favoreceu... ou a falta dela. Nessas horas não importa qual seja sua formação acadêmica ou parental: toda e qualquer moral falsa se dissipa ao som dos primeiros acordes que anunciam a promiscuidade. Pior do que isso é ficar de fora da banda, como estou agora. Se ao menos eu estivesse com fome, poderia fazer companhia às bandejas de petiscos e à jarra com certa mistura alcoólica não identificada. Pelo menos a música é simpática, lembro-me daquela ingrata durmindo ao som do rádio ligado. Estou com a sensação de que esqueci algo em casa ao sair. Sempre tenho... Droga, a televisão ligada! Acho que ninguém aqui sentiria minha falta se eu voltasse agora para desligá-la. São tão raros os momentos em que paro para assistir algo, que, quando o programa termina, esqueço que existe um botão adverso ao ON. 23:40. Deve estar começando 'Lady Vingança' agora. Finalmente hoje vou dar continuidade a essa trilogia espetacular. Já é um excelente motivo e argumento para voltar à minha casa o mais rápido possível. Acho que agora eu consigo sair sem ser notado."
- Fernando, o que você está fazendo sentado ai sozinho na sala, rapaz? Não estava pensando em ir a algum lugar, estava? Vamos pra piscina. A Renatinha falou que vai entrar e você não vai querer perder esse show, né?!
- Não, não. Meu pai não perderia. "Merda."

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Diálogos

- Levante.
- Você é um deles?
- Acha que sou?
- Já não consigo mais distingüir o duvidoso do certo. Então, nada acho.
- Não se preocupe. Levante.
- Aonde vamos?
- O que importa não é aonde e sim porque.
- Então, por que?
- Você faz muitas perguntas e costuma ter poucas respostas. Vê esse buraco?
- Sim, mas não faz sentido. Ele nunca existiu até agora.
- Engana-se, minha cara. Ele sempre esteve aqui. A pergunta é: onde VOCÊ esteve esse tempo todo?
- Eu? Provavelmente aqui esperando por você. Como se chama?
- Nomes são apenas mecanismos introdutórios desnecessários. Não preciso de um, afinal já me apresentei simplesmente com palavras. Nem você vai precisar disso.
- Mas eu tenho um: chamo-me Car...
- Já disse que será desnecessário. O que vê através do buraco?
- Engraçado você perguntar isso. Eu me vejo.
- E como você está?
- Pálida, triste e velha. Estranho, pois não me imaginava assim no futuro.
- Por que não? Não pensou que o tempo e seus infortúnios pudessem te atingir, não é mesmo? Viver aqui no quarto, trancada a maioria do tempo, não vai conter o que te espera, Carolina.
- Tenho medo de pensar que a morte é um personagem materializado e cômico, assim como nos desenhos. E um dia, virá vestida de preto para julgar os pecados da alma condenada. Ei, como você adivinhou meu nome?
- E quem disse que ela não é? Ouvi dizer que ela pode se materializar e que a comicidade é sua maior aliada. Traz simpatia a ela. Se os humanos gostam tanto de rir, então por que disfarçam sua paixão pela Morte?
- Não me respondeu como sabe meu nome se eu nem te falei.
- Você já está na minha lista há algum tempo.
- Pera ai. Quem você disse que era mesmo?
- Eu? Sou apenas um amigo cômico que te mostrou um futuro inexistente. Não tenha medo. Podemos ir?
- Mas e minha mãe? Será que ela vai sofrer muito depois de ter me visto deitada sem vida no chão?
- Ela se acostumará depois de um tempo, afinal será só o seu corpo pálido, triste e jovial que estará ao lado da cama. Vamos! Temos hora marcada e já estamos atrasados para o julgamento.
- Ah, reparei que você não está de preto.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Tempo de idéias

As ruas, há muito, demostravam-se solitárias. Em cada esquina podia-se sentir o cheiro fétido de urina, escarro e lama. As chuvas rotinárias não deixavam nenhum rastro de terra seca, assim, as raras pegadas ali marcadas denunciavam alguma pobre alma a pé que passara sem compromisso. Dos bares só se era possivel ouvir as esquecidas lembranças referentes a famosos LPs inesquecíveis. The Beatles, Bob Dylan, The Clash... Gêneros e letras diversas para quem quisesse apreciar. Destaque também para as meninas e bebidas lá oferecidas, afinal, após a mistura desses três ingredientes, só havia uma certeza no final da madrugada: sexo. Certeza, obviamente, para os mais espertos e menos sujos. A brisa, que cortava levemente o silêncio impregnado em cada esquina, também desafiava as folhas presas em topos de altas árvores. "Nada é anormal ou fora da lei, mas nada é mais comum por aqui". Os tempos haviam mudado, tornaram-se mais amenos e irreconhecíveis à medida que a liberdade já podia ser reconsiderada como ideal e a solidão não era mais fator constante na vida dos ocupantes desse pequeno cenário. Mas como de costume, o único lugar dessa nefasta cidade que nunca se mantia calado era o antigo Hospício Craw, que mesmo depois de interditado, suas histórias iam além do alto muro de concreto cinza com portões enferrujados que o rodeava.
12 de agosto de 1984
Não tenho filhos, esposa e nem a pretensão de tê-los. Já tenho preocupações o suficiente comigo mesmo. A tv está ligada, mas nunca há nada de interessante para se ver, por isso sento e escrevo. Nada de importante. Desenho, rabisco, escrevo um diário. Quem sabe depois que eu me for pra um lugar melhor alguém encontre esse caderno com minhas memórias. Uma carteira de cigarro já não é mais o suficiente pra uma hora. Tudo me faz fumar e em grande quantidade. Seja por causa da velha insuportável do andar debaixo que aparece para cobrar a merda do aluguel ou pelo simples fato de eu não aturar mais nada. A cidade está se tornando cada vez mais um lixo e as pessoas vivem com medo delas mesmas e do governo. Nada é anormal ou fora da lei, mas nada é mais comum por aqui. Moro num apartamento pequeno, com alguns móveis, paredes mal pintadas e barulho, muito barulho vindo de toda parte. Não posso reclamar, pois consigo pagar por esse buraco e isso já é algo. Tento manter a descrição sobre o meu trabalho, porque o que faço é seguramente um forte motivo para que o Governo bata à minha porta para maiores esclarecimentos. Costumo chamá-los de "Roedores", pois detonam tudo que conseguir de qualquer pessoa por uma boa informação. Até sua vida.
21 de outubro de 1984
A televisão anuncia que Steve Jones acaba de bater o recorde na maratona em Chicago. Interessante. Sempre quis ter alguma fixação e fazer disso uma vitória, mas isso não é pra mim. Durante esses três meses que se seguiram de um registro para o outro, passei alguns sufocos tentando cumprir o objetivo do meu trabalho. Os Roedores são animais persistentes e sombrios, escondem-se em vielas escuras e escultam tudo o que se move e que tem ruído. Portanto não é facil fazer o que faço. A ida ao bar ontem foi a única coisa que conseguiu me alegrar. Fazia tempo que não dançava com belas moças e entornava uma boa garrafa de uísque. Gosto de passar um tempo lá ouvindo os LPs "da moda", sem contar que meus ídolos preferidos estão sempre sendo reproduzidos por meio desses bolachões.
22 de dezembro de 1984
Já não durmo há 3 dias. Não consigo descansar sem pensar que a qualquer hora eles virão atrás de mim. Ouço barulhos na porta, mas não posso distinguir se é apenas o vento ou eles a espera da minha distração. Tudo deu errado. Mais cedo ou mais tarde eu sabia que isso iria acontecer, por isso não tenho filhos, esposa nem nada que me faça ter apego sentimental. Agora eu sei como é se sentir prisioneiro de si mesmo. O natal se aproxima e a única diferença desse para os outros é que eu finalmente sei o que me espera no futuro.
3 de março de 1985
Só agora obtive forças para voltar a escrever. A paisagem que vejo hoje já não é igual à anterior. Já não é mais minha cama, minha tv ou minha mesa que vejo. Agora tudo é simplesmente branco sem qualquer tipo de móveis. Apenas um quadrado acolchoado branco. Não tenho mais noção das horas, apenas sei o dia porque as poucas vezes que saio desse quarto consigo ver um calendário sujo preso numa das paredes da secretaria. Como cheguei aqui? 30 de dezembro foi o dia, no mínimo marcante, na vida dessa pobre alma que vos escreve esse diário. A porta abriu com um grande estouro provocado provavelmente por um forte chute. Assim que percebi o que iria acontecer, escondi o diário embaixo da blusa, prendendo-o na calça. Três roedores entraram e só pude ver uma camiseta branca na mão de um deles, enquanto os outros dois me apagavam. A luz recobrou a tempo de me fazer enxergar o nome do local com portões rígidos por onde adentramos: Hospício Craw. Não há melhor lugar para se obter informação do que no terreno onde a realidade é relativa à expansão da loucura. Nem a cadeia consegue ser tão suja e cruel como aqui.
15 de maio de 1985
Demoro a escrever, pois é arduo distinguir o que é real da fantasia. São os malditos remédios e as torturas que me deixam mais lunático. Ontem foi o dia do Roedor fazer algumas perguntas relacionadas a minha possivel participação com um movimento crescente na cidade, que coloca o nome do Governo em maus lençóis. Não respondi, não vou ceder assim tão fácil. É necessário muito mais calmantes e sedativos para me fazer falar. O Hospício Craw é um lugar atormentado e sombrio. Seus corredores são estreitos e dão a sensação de labirintos sem destino certo. E por pior que sejam, as pessoas sempre se parecem umas com as outras, afinal estão na mesma prisão vivenciando a mesma loucura. Apenas uma coisa ainda me alegra: saber que há de fato um movimento pela cidade. Então isso quer dizer que nem tudo deu errado e eu posso tranquilamente aceitar a morte como único escape dessa tortura.
29 de julho de 1985
O gosto da minha última refeição é particularmente mais peculiar. Tem sabor de angústia, mas tempero de vitória. Não morrerei em vão, e sim sabendo que não fraquejei em momento algum. Há notícias sobre o enfraquecimento do Governo e isso me dá motivos para não temer a morte. Marco esse dia como sendo o dia que passo desse para um lugar melhor. Muito melhor. À propósito, meu nome é Tom Petry.
O diário parou em minhas mãos como se seu destino fosse certo, assim como as idéias de Tom. Lembro-me que na época, meu pai havia recebido uma carta por de baixo da porta e a guardara em um de seus baús. Não só ele como o resto da cidade que não tinha ligação alguma com o Governo recebeu também. Foi o suficiente para que Roedores temessem a perda do poder e apertassem ainda mais o cerco de perseguições. Algo como alguns meses de confronto, até mesmo depois da morte de Tom, foi necessário para o enfraquecimento absoluto do poder do Governo e de seus subordinados.
"Olhai, Povo, por entre os becos, por entre as casas e através da imaginação. Não é necessário muito esforço para perceber que tudo entre nós está sendo destruído e ridiculamente transformado em instrumento de poder por parte daqueles que somos obrigados a chamar de governantes. Governantes sim: da opressão, do sofrimento e da morte. Somos a maioria e mesmo assim nada podemos fazer. Alias, não podíamos até agora. Convido-os, cavaleiros e damas, para uma guerra. Não qualquer guerra, mas uma silenciosa e mortal, onde só quem vai morrer definitivamente são aqueles que sempre procuraram a tortura como forma de vitória. O nosso trunfo está estampado em cada rosto e em cada pensamento que podemos formar juntos. Espero-os ansiosamente para que os jogos começem. Estejam preparados e se perguntem se a vida que levam é correspondente a que gostariam de ter. T.P."
As idéias geralmente têm mais poder do que qualquer ação clara. E isso Tom entendia perfeitamente.