quinta-feira, 8 de julho de 2010

(a)Normalidade.

No centro do prato havia uma certa divisão estabelecida há quase 30 anos desde que aprendeu a comer sem ajuda dos pais. Feijão à esquerda; arroz, à direita e qualquer outro acompanhamento, rigorosamente, na parte superior. Essa era a base para quase tudo na sua vida: modo de trocar de roupa, de escovar os dentes, de se olhar no espelho, de conversar e, o mais importante, de lustrar o sapatos. Primeiro o pé esquerdo, depois o direito. Não que acreditasse em supertições ou azar, mas o contexto à sua volta remetia a esse certo capricho. Seus amigos eram peculiares e seus gostos diferentes da maioria das pessoas. Gostava de ver televisão deitado de cabeça para baixo. "Vejo melhor assim", dizia. Passava horas no quarto sentado envolvido em seus próprios pensamentos... "Será que eu vou conseguir zerar Black dessa vez?". O telefone sempre tocava 00:30. Era seu vizinho, que pode também ser chamado de amigo, avisando que no canal 69 estava passando o Eros Time. Todos os dias era a mesma coisa. E lá ia ele dar uma olhada para ver se novamente os produtores iriam colocar a mesma atriz sem graça da semana passada. "Nada como o humor erótico", ria. E ria sozinho. Porque há quase 30 anos, desde que aprendeu a viver e comer sem a ajuda dos pais, ele mora sozinho. Mulheres, essas só mesmo no canal 69. Provavelmente pelo trauma que sofrera na época do colégial: "Oi, você quer ver minha meleca? Tem gosto de danone e é verde". Nenhuma garota nunca mais quis sentar ou estar perto dele até a formatura. Assim, se acostumou a viver sem o sexo oposto, que só serve para atuar em filmes eróticos. Seu maior prazer era observar as pessoas subindo e descendo as escadas rolantes nos shoppings: as velhas sempre confundiam a direção das escadas, as crianças quase sempre caiam sem a ajuda dos pais, os pais raramente prestavam máxima atenção em seus filhos e os adolescentes, às vezes, tinham a brilhante idéia de ir contra o ritmo de propulsão do movimento. Mas, quase 98, 73% de todos que transitavam ali pegavam no corrimão. "Ninguém sente vergonha de fazer isso? O mundo está perdido." E anotava em um pedaço de papel casos extremos de "anormalidades" como essa.
Seu superego sempre se manteve tão inflado que mal podia pensar com clareza em fazer coisas impulsivas, já que a balança que equilibrava seu caráter e modo de agir pesava significativamente para o lado chato e idoso dessa medida. Antes de fazer qualquer movimento que o expusesse frente a outras pessoas, como sair de casa, era necessária muita disposição mental para enfrentar as condições adversas presentes na maioria dos lugares. Mas para pagar as poucas e básicas contas que lhe eram cobradas mensalmente era indescutível passar por esse ritual até chegar à sua mesa de trabalho todas as manhãs. Sentava-se na cadeira e se mantinha frente ao computador quase que por todo o expediente, parando apenas para tomar água com adoçante, seu doce preferido, e para ouvir as piadas do Homem-do-Olho-de-Vidro que trabalhava na mesa ao lado.
HOV: Qual é o inquilino que mais sofre, T.?
Nosso protagonista apoiava um dos braços na estande próxima com ar de quem nunca tinha ouvido essa e respondia com outra pergunta:
T: Quem?
HOV: O espermatozóide.
T: Hmm, por que?
HOV: A casa é um ovo, o condomínio é um saco, os visinhos do lado são uns pentelhos, o visinho dos fundos só faz merda, e quando o dono está duro, bota ele pra fora.
T: Interessante. Mas não entendi a parte de como "bota ele para fora".
HOV: Você já ouviu essa piada tantas vezes e ainda continua sem entender essa parte. Acho que você tem que começar a praticar mais - e deitava por cima da mesa rindo incontrolavelmente.
T: Olha, Homem. Há quase 30 anos, desde que aprendi a viver e comer sem a ajuda dos meus pais, moro sozinho, conheço intimamente só as mulheres do canal 69, tenho um bloco de anotações onde escrevo o que pessoas esquisitas como você fazem e todos os dias batalho mentalmente para poder aturar o mundo exterior. Acho que, no mínimo, eu merecia saber a explicação dessa piada, não acha?

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