domingo, 27 de março de 2011

Piii

Aline encontrava-se parada diante de sua própria imagem. O formato em retângulo, com pequenos quadrados em mosaico ao redor, parecia-lhe um tanto familiar. Cresceu tentando buscar alguma identidade nesse espelho, no entanto, seu reflexo nunca havia se mostrado tão distorcido como agora. O brilho do sol despontava ao longe e aos poucos ia iluminando as cortinas e por fim todo o quarto. Em uma das paredes, mantinha alguns pôsteres de seus filmes preferidos, na mesinha de canto apenas uma antiga foto quase desbotada da sua infância e, em cima da cama, suas roupas denunciavam a rotinária caminhada noturna por entre ruas desertas e boates promíscuas. A vida, ultimamente, demostrava-se cada vez mais salgada, se é que se pode atribuir à tamanho conceito complexo um mero adjetivo apropriado à culinária. O apartamento se transformara em uma harmônica bagunça, reflexo de seus transtornos sentimentais e impulsivos. Desconhecia boas noites de sonho e já não lhe eram contadas mais histórias de dormir como sua mãe costumava a fazer. Teve que se acostumar a dormir ao som do jovem casal, que moravam ao seu lado, brigando quase como em uma sinfonia do caos à margem do apocalipse. "Cada um tem sua razão de perder o controle", pensava Aline assim que as discussões e gritos ficavam insuportáveis. Então, as noites que se seguiam dessa forma eram noites que Aline buscava, por entre esquinas distantes do seu bairro caótico, algo que a distraisse. Quase sempre voltava acompanhada pela calmaria que só o primeiro raio-de-sol pode trazer. O noticíario da manhã exibia sempre reportagens com o mesmo teor jornalístico. O mundo havia se transformado em algo fútil, sem prazer, e os reporteres faziam questão de escancarar isso através de suas estúpidas entrevistas e documentários. Aline se sentia distante de tanto moralismo e falsidade produzidos pela mídia, mas mesmo assim só conseguia engolir o copo de capuccino ouvindo a engraçada voz que o âncora fazia ao anunciar a mulher do tempo. Estranha, mas aceitável.

A manhã se desenrolou como se a preguiça fosse seu pecado preferido. Os carros, enquadrados no contínuo frenesi que só as grandes cidades movimentadas podem proporcionar, iam seguindo por entre ruas e avenidas sempre lotadas de compromisso, desorganização e pressa. Não participar desse circo é tarefa daqueles que preferem assistí-lo de fora, longe dos palhaços de relógio, dos domadores de veículo e dos malabaristas de dinheiro. Assim sendo, Aline se dispôs a ver o show pela janela do seu pequeno apartamento, tendo tempo para pensar no seu trabalho fotográfico interminável com data marcada para exposição. Nada muito sério, apenas experimental no sentido de tentar traduzir a alma daqueles que ficaram eternizados através das lentes de sua câmera profissional. O difícil é que, nem seu próprio interior, Aline conseguiria entender algum dia. De certa maneira esse entendimento se perdeu há muito tempo desde do dia em que a mudança forçada da casa dos pais afetou definitivamente sua vida. Sem pais, sem casa e com uma vaga lembrança da infância estampada na velha foto, Aline foi obrigada a envelhecer dez anos para se acostumar com o fato de viver e permanecer sozinha. Passavam pelos seus pensamentos as cenas do rosto de sua mãe que, apesar da tragédia, mantia a doce calma que lhe sempre foi própria. Durante a tarde, seu destino seria certo.

Aline já havia parado, depois do incidente, tantas vezes frente àquela porta sem qualquer razão substancial, que o hábito lhe parecia uma forma de resgatar as coisas boas e, sobretudo, a realidade que se esfumaçara de dentro dela há algum tempo. A cor marrom da porta, detalhadamente marcada pela maçaneta prata, harmonizava-se com o verde escuro do jardim mal cuidado que ali esperava pela hora de finalmente apodrecer por completo. A casa antiga mantinha a impecável estrutura, a qual havia sido arquitetada há quase 43 anos. Naquele tempo, as árvores davam frutos, os vizinhos eram quase como parentes e a família era uma unidade. Nada mudou, exceto pelas árvores, que desapareceram; pelos vizinhos, que se mudaram; e pela família, que já não existia mais. Sem esperanças de encontrar alguém, manteve-se estática segurando o objeto prata, a fim de que a porta marrom pudesse indicar como uma bússula seu próximo passo. A noite caia calma, diferente do tumulto e turbilhão de sentimentos que se passavam em sua cabeça. Enfim, tomou coragem para forçar cudiadosamente o trinco velho que já não cedia há algum tempo. O primeiro cômodo que se observava diante dos cautelosos passos rumo ao corredor de entrada era a lustrosa sala de jantar. As imagens daquela época iam e vinham na cabeça de Aline a ponto de fazê-la acreditar que naquele momento estava ela ainda pequena sentada à mesa inexistente, enquanto sua mãe de súbito adentrava a sala carregando uma cesta de pães frescos. Logo em seguida, a doce voz maternal anunciava em harmonia a refeição ao último habitante da casa. E a pequena Aline continuava inquieta olhando os pães como se fosse devorá-los todos de uma só vez. Sentia uma fome descomunal. Seu pai, o último a se sentar à mesa, dava-lhe um demorado e profundo beijo na face. A buzina de um dos carros na rua fez Aline despertar da miragem que a envolveu por completo, como se participasse daquela cena. De fato, sentiu fome e seguiu o caminho até a antiga cozinha inabitada. O carpete que cobria o chão estava destruído pela ação do tempo e não havia nenhum móvel nem eletrodomésticos presentes. A ilusão de que pudesse encontrar algo para comer naquela cozinha transformou a fome em decepção. Optou por terminar o tour pela casa antes que a fome anunciasse sua presença novamente.

A escada, que levava aos outros aposentos da casa - tais como quartos e banheiros - continha alguns degraus frágeis e Aline foi se esgueirando até o segundo patamar. Não é preciso comentar que as lembranças novamente iam e vinham à mente da protagonista sem aviso prévio. O primeiro quarto escolhido incoscientemente para se explorado fora o seu. O taco de madeira que cobria o chão estava quase todo desgastado e algumas áreas ao redor já se encontravam encobertas. Não havia muito o que fazer em um cubículo vazio de alguns metros quadrado onde só restaram passado e cheiro de mofo. Mas algo chamou-lhe atenção. No cantinho direito do cômodo embaixo de um dos tacos levantados, quase que imperceptível, encontrava-se uma relíquia, um tesouro perdido há 15 anos desde que sua saída da casa havia sido imposta judicialmente depois da morte dos pais.
...
"Olá, se você ligou para esse número, sabe quem é. Deixe seu desabafo, suas angústias, sua receita de bolo ou seu nome, se for gatinha. Tudo isso depois do sinal que você bem conhece. PIIII"
- Finalmente encontrei, Gabriel! Encontrei a foto que prova que você já vestiu as roupas da minha mãe quando éramos pequenos! Eu sempre estive certa! Você precisa ver isso...

Entre risos e choro.

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